sexta-feira, 29 de agosto de 2014

Arrasta pé





ARRASTA_PÉ


Antes da 2ª. guerra  o mundo parecia mais sorridente. Os  menores de l5 anos desejavam ser maiores de idade; os de 40  já pensavam em transparecer só 30 anos. Os primeiros  vestiam  a primeira calça comprida, paletó e ostentavam gravata do pai ou do irmão adulto. Chapéu  , um jeito de ser grande; alguns ainda cobiçavam as palhetas – de palha rígida,branca, e com larga faixa preta! Sapato marrom, raramente preto, mas seria grandioso se pudesse obter um  bicolor – branco , ponta e calcanhar preto!


Alguns colegas de ginásio  e do bairro se agruparam para   diversão. Assim  surgiu  o Quinteto Meridional  –  classe  média baixa, zona sul.
Importante, porém, é que, a partir dos nomes de guerra (desde o  inicio dá para desconfiar que era tempo de paz, OK?),  se saiba duas ou três coisas  acerca dos protagonistas:
Chicobeleza - ( boa pinta, mulherengo) Brasileiro,.masculino,.branco., de menor. O mais esbelto do quinteto, bom de bico, líder pelo jeitão..Chegava ao salão  e  já era notado  pelas meninas  e se apoderava da mais interessante delas, que por sua vez  o considerava  o mais interessante  dos interessados. Para os que sobravam, sobrava as menos interessantes,  e cada uma dessas últimas haveria de ficar com um menos interessante.


Pernilomgo -  ( magricela  e compridão ).Brasileiro, masculino,branco, de menor.
Alemão - ( meio albino, estomago travesso  avesso  ao álcool).Brasileiro, masculino, branco,   de menor.
Conde  - ( almofadinha,  mania de grandeza).. Brasileiro, branco, masculino,  de menor.
Tijolo - (baixote,  trouxa satisfeito, “tão gentil, que chega ser grosseiro”,  segundo  o general francês).Nisei ,  masculino , amarelo, de menor.
Baileco de fins de semana era imprescindível. Havia  de ser procurado  em clubes,salões de festa, casas de família  e até  numa espécie de escola de dança  no Trianon. Vespertinos, no Ginásio Rio Branco.E nem  é preciso comentar sobre as grandes salas ( Azul, Vermelha e Amarela) do cine Odeon,  no carnaval!


Traje, em geral problemático. Rigor era exigido nas formaturas , nos Clubes
chiques, no Esplanada hotel, na celebre “Noite de Maio”  imperatriz por muitos anos! Clubes Comercial, Piratininga, Tietê, Espéria, Tênis Clube,  podiam consentir um  rigor atenuado – terno azul escuro, camisa branca, gravata  borboleta  e sapatos pretos.Nem todos possuíam dois pares de sapatos, um único marrom, precisava ser tingido!
Smoking poderia ser emprestado, não se cogitava alugar.  Motivaria  ciumeira, como no caso  do colega , proprietário de um belo smoking , que    se recusou a cede-lo   ao seu melhor amigo  para o baile  de formatura da noiva , embora em ocasiões não importantes já o tivesse feito,


Dançar bem  nunca foi coisa para principiante. Os pequenos conjuntos se saiam bem com as  musicas populares brasileiras - balançava da marchinha para o  sambinha  e os pares novatos  podiam se dar bem.    Quando imitavam jazz-band parecia que era a Marselhesa em andamento moderato;  o tango argentino , condenado pelos religiosos fanáticos, se afigurava um bolero de Ravel em andamento presto ; a valsa,  bonita e  gostosa para um baile, perdia o interesse pela falta do violino e   pelo domínio  dos ritmos modernos E  tanta complicação  contagiava os pares que se adaptavam conduzindo a dança  como  se o ritmo fosse sempre o mesmo


Episodicamente  se deliciavam com orquestras  proeminentes   como a conduzidas   Otto Wey  , de repertorio americano mais compatível com o habitualmente ouvido no cinema. Por outra, o futuro famoso, maestro Gaó, paulista de Salto, prosseguiu sua brilhante carreira no Rio de Janeiro nos Estados Unidos.
Importava-se muita coisa boa – fox, rumba, bolero,tango -  americanas, mexicanas, cubanas, argentinas , francesas, alemãs como Barril de Chope (Rosamunde) sucesso mundial dos anos 30 e ainda  atual., vienenses,   clássicas valsas da categoria do  Danúbio Azul , preferenciais  em bailes de formatura! Um ritmo diferente, a conga,  fez sucesso, dançada de modo curioso – 1,2,3 perna para um lado, 1,2,3  para o outro.
Em verdade, quase a totalidade das  músicas era  apreciada  pelo rádio  em audições de discos – antigos 78, ou Lp33 rotações p.min.,  e  para dançar  nas residências de famílias .
*
A noite no salão do Cine Braz Polytheama não teria sido uma decepção  completa se o musico do trombone  tivesse comparecido, conquanto a bandinha parecia  ritmada.  Sala  repleta, bem sentadas as mocinhas  e suas  mãezinhas ou as titias. Pista de dança nem tanto, ou muito menos. Nenhuma se levantava sem formal apresentação do moço, principalmente se viesse de outro bairro. Taboas em profusão. Taboadas saudosas,   bom exemplo de bairrismo birrento.
Assim, para os de fora era melhor dar  o fora.
Pernilongo, entretanto, resoluto,    dirigiu-se a um par de  simpáticas .Uma saiu apressadamente e a outra manteve-se simpática...
- A  senhorita dança?
-  Eu não danzo...
-  Por quê? Me pareces tão  jeitosa...
- Quando eu danzo eu sudo, quando sudo eu fêdo.
...
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Uma viagem à Itaquera,  em um carrão alugado pelo  grupo, redundou em fracasso semelhante,  porém em nada parecido com o “causo da danza”.


***
Ao Alemão  chegou o instante de  gloria. Conquistou o olhar da morena de olhos pretos, numa só piscada e ela retribuiu com duas piscadelas (uma em de cada olho). Na mesma noite os três (ele, ela e a futura sogra) foram a uma festa  no salão do Trocadero, atrás do Municipal . Dançaram, como um par de cisnes ,  à  exaustão,   e voltaram às poltronas. A futura sogra, enquanto levava uma piteira,  de marfim autentico, à boca de bela dentadura não autentica, meneou metade de sorriso  com o  lado livre, significativo, porém. A  felicidade se desenhava eterna,
Mas, nem tudo que dura ...   Alemão, necessitado,  pediu licença  por meio mínimo, e também  ousou meio pulo ao bar   para bebericar  em comemoração  da  posse daquele olhar! Não tardou que  a espuma indiscreta da cerveja, viesse à tona -  erupção  goela acima. Sentindo o tornado, ele retornou  a sua mesa  e   nela  se apoiou  concomitante com a torrente goela  a fora ,  conseguindo  apagar     o cigarro aceso na ponta da piteira  da fumante!. Algo tonto e bem alegre, como um trouxa satisfeito, com respeitosa elegância, acenou cinco vezes “até logo” com  a  mão esquerda e, na direita, uma toalha  preventiva de reprise . Contudo,  outro pretendente, sorrateiro, se  aproximava, muito  contente  da vida!
Três meses depois ele recebeu um cartão de noivado. Auxiliada pelo pretendente, escritor semi falido e futuro marido  abonado, ela convidava para  “comes e bebes”, porém, com um post-scriptum vulgarmente conhecido por P.S.- “excepcionalmente para  o caso, será servido chá inglês com uma gota de leite frio.e torradinhas à vontade”.
   ****
O  Conde, hábil no ataque às namoradinhas dos outros, atacava pelos favores de uma engraçadinha que.   mantinha pudico resguardo   O ponderável veio   à luz  com  poder  superior –  casa nova e Lincoln Zephyr.da família atacante. Aí,  ela adivinhou   que  automóvel é muito melhor do que bonde, e  desguarneceu o coração para  um novo ataque.
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Acompanhando rigorosamente  o passar dos dias , semanas , meses, anos, o tempo, forçosamente, também  foi passando e o grupo desfazendo-se  - cada um tomou o seu caminho, porque é complicado tomar o caminho do outro.
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Assim, por exemplo, Chicobeleza se engraçou por uma gracinha da vizinhança, e esta por ele. Longos tempos apaixonados, passeavam de braços dados, fenômeno que só era observado em casais seriamente comprometidos, e  ao longe formavam uma única  silhueta, como um às de copas” preto”, porque na cor devida  era difícil  parecer silhueta. Desprezavam os bailes – ao invés de dançarem umbigo contra umbigo  (Miudinho,xote), era mais barato  se abraçarem, sentados na casa da futura sogra e tomar um cafezinho, inoportuno, no intervalo do beijocar medonho!
Toda a redondeza ,  unânime , sentenciava   constituírem eles o casal mais belo,
feliz, e promissor de prole maravilhosa. Muito tempo depois,  todavia, o  final  contradisse  – inopinadamente  se separaram,  nunca mais se encontraram, e ambos os dois ( para não dizer  três ou quatro) ficaram com os cabelos totalmente brancos. Nunca   se soube o motivo desse descolorido desenlace cinematográfico, nem se encontrou explicação de tamanha canície, embora  reiteradas consultas à  ONU !


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- Você quer  comprar esta minha aliança?  Dentro do ônibus , no largo São Bento, Pernilongo desiludido do amor, encontrara o ex-companheiro Tijolo , o qual, admirado, perguntou:
- Não estavas com casamento marcado?
- Ser ou estar não é bem a mesma coisa, principalmente quando se planeja uma
surpresa à amada...
- Todas mulheres  adoram surpresas...
- Nisso botei bastante fé.  Foi no domingo de revoada dos “planadores  voadores e dos pára-quedistas puladores “.
- Caiu um planador?
- Não, fui eu que caí  do pára-quedas, logo na primeira tentativa  Seria um presente demonstrando  audácia, pronto para dar a vida por ela, como no filme “Audazes e Amantes “.
   - Que bonito!
   - Mas ninguém  achou. Nem o pai, tão rico,  negou-se a pagar a conta da minha hospitalização ...
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Trinta anos depois.
Afinal de contas,  a toda hora  há algo a ser contado. De fato, dois dos  ex-companheiros  se encontram numa festa de seus filhos e  mantém um longo dialogo dos mais belos  e sensíveis da língua vernácula:
Tijolo:
- Que tal se os nossos filhos, juntos, fossem a um baileco como os de antigamente?
Conde:
- Você ainda  vem me falar daqueles porcarias  de arrasta-pés !

Luis Gastão Costa Carvalho Serro-Azul

28 /Julho/ 2014

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