sexta-feira, 18 de julho de 2014

KOMBI



Seis horas da manhã tremia o telefone do doutor. Era um aparelho pra frente, só faltava falar! Errado,   falava:-“ sua mensagem está sendo gravada... Disque o   CPF  ou  CNPJ,  o  CEP,  RG,  Email. Se   é convênio disque zero; se é   particular disque 1 ,   só  para conversar disque 2 ,depois do almoço;   urgência, disque 3 e aguarde. Está me ouvindo?  E passava  numerosas  eventualidades, por exemplo, em caso de dor no peito disque 3.1,   dor de cotovelo, eis o numero do  nosso psicólogo”...

Na  outra ponta da linha   a discagem foi perfeita! Iniciou-se um  dialogo,nos moldes de dueto, embora desinteressante  num horário tão cedo:
-Doutor , estou na porta do seu consultório,  meu anjo da guarda e médico de família indicou o seu nome, estou infartando...
- Não se preocupe, todos os bons  livros dizem que  o período da manhã é  mais agradável para essa ocorrência. Não  seria mais apropriado que o anjo  lhe atenda...
- Ele  está em jejum.
- Religião?
- Não, ele toma o café só às 10 horas, em jejum ele desmaia, se desmaia irão dizer que é epilepsia.
- Entendo. Então disque  4 para  minha caseira abrir a porta. Estou indo.
             
Ao findar a segunda semana da internação o cliente obteve alta  melhorado, com
o  animador diagnóstico  de  infarto do miocárdio.
.
Retorno ao consultório outro dueto,  um típico   duo, mas     só poderia ser ouvido por um estranho bem camuflado ( note-se que  a sofisticada  aparelhagem telefônica  estava” sem sinal”).
-Agora que já somos amigos devo contar tudo.
-  Amigos não,  você é apenas meu cliente e eu,  o  médico  (  chavão sábio, dileto dos doutores sabidos).Se  evocasse sua  infância, poderia ser mais afável dizendo “ amigo é só o meu santo e o dinheiro”  (dito  bem dito pela sua antiga e bendita serviçal).
O outro, desapontado como quem perdera   7    pontos, derramou uma lagrima  através do canto interno do seu olho esquerdo. Em seguida mais  uma, outra
e enfim  outras tantas, como  uma cachoeira encabulada  ante a seca na hemi-face direita, como se   o globo ocular , excluído  por uma formidável dentada, desse chance para um choro canhoto, geograficamente falando.  Deste modo, o observador  que tivesse a ventura de analisar tal pranto,  espantado,concluiria: é um choro impar!
-  Com prudência, pondo amizade  à  esquerda,  ele prosseguiu:
- Tudo por causa da Kombi.
- .Você bateu?
- Não,  foi presente  dela  no meu 10º aniversário de casamento.
- Dela, quem?.  É  decisivo para meu raciocínio.
- O senhor não desconfia? Então, eis uma dica - eu sou pobre e ela é rica. , espanhola  e  tem  pelos castanhos nas  narinas mais longos que as próprias pestanas.
- Ah! Ótimo ,  assim   evita  a invasão de voadores, como os aedes da dengue (discurso quase infectuoso demonstrativo de sedimentada atualização preventiva).
-A perua somente me servia para fazer a feira, comer maçã , e pouco a pouco, meditar seriamente sobre o mote “coçar e trair é só começar”. Acredite, em l8 anos, nunca  pulei a cerca.
- E quando criança  também não  pulava corda?
- Com medo.
O doutor  sem levar em conta os dados sobre os pulos,  fez   a conta à maquina de calcular,  calculando  que o cliente passou oito anos em resguardo antes de se casar, anotou na ficha e grifou em vermelho. E ficou pensativo.

O  final do relato seria apoteótico,  se não  constituísse   um querelante  monólogo.
-  Ela  estava no Guarujá, enquanto isso, em companhia   de companheiros experientes, fui  à farra  na boate  . Enchi a cara de bebida e a perua de muitas peruas  para ir completar  o rega-bofe lá em casa .Foi ambiguamente a  primeira  melhor, e última  pior bacanal deste mundo
Imagine,  lá pela madrugada ela ,  tal e qual uma  presidenta  re-eleita do partido dos Desmancha Prazeres, escancarou a porta e avançou pela sala como locomotiva de estrada de ferro  ( vide A Besta Humana ,  filme, 1938)), espalhando brasas e bufando num fungar enfurecido pelas narinas pestanejantes, distribuiu tapas, unhadas, chutes, sonorizados com palavrões em castiço portunhol .  Não  custou para pulverizar aquela manifestação coletiva de joie de vivre,  incluindo duas convivas ex-estagiarias do Bois de Boulogne.  Peruas sumiam pela janela, porta, chaminé, ou qualquer fresta vazia.
Para  mim não sobrou  nada  além  da  mordida no olho direito,  cancelamento de  cartões de crédito, da participação em duas heranças ,  e desapropriação da residência, idem do apartamento em Miami,venda da Kombi,  e o infarto do miocárdio.Para  ela, a pena  de ir à feira.
-  Meu amigo, ajude-me .Perdão, doutor, ajude-me : quando poderei comer  maçã, e dedicar-me aos pulos  hoje aperfeiçoados  sem a inconveniecia da cerca. ?
O doutor permaneceu pensativo. Em verdade, muito pensativo...


Luis Gastão Costa Carvalho Serro-Azul  / Julho, 2014

Nenhum comentário: